standing next to me :: mr. kane

  Estava lendo O Homem Duplo de C.J. Koch, enquanto a chuva caía lá fora na manhã fria, como caiu pela  semana inteira. Sentada em minha poltrona perto da janela, tentava entender quem era o homem duplo daquela estória e em que sentido se dava sua duplicidade, entretanto me conformei ao perceber que teria que esperar até sua última página para de fato compreender.
  Em uma pausa, fui até a cozinha para esquentar o chá. Parada ao lado do fogão enquanto a água fervia, comecei a pensar sobre os últimos acontecimentos de minha vida.
  Iria completar dois anos desde que eu deixara minha cidade e me mudara para a grande Londres, um ano desde que eu conseguira me estabilizar financeiramente e tocava na companhia. Oito meses desde que eu terminara meu último relacionamento e consequentemente, oito meses desde que eu não me envolvia com ninguém. Quatro meses se passara desde meu aniversário de vinte e quatro anos e de que fui solista em uma apresentação da companhia em Berlim perante alguns dos músicos mais importantes do ramo. Mais recentemente, fui escalada como violinista substituta de Sir Paul McCartney e havia substituído um de seus músicos durante a música My Love, pois acreditem ou não, ele teve uma necessidade urgente de usar o toilet. Patético para ele, mas uma experiência incrível para mim. E há menos de uma semana, recebi o convite mais de Miles Kane do que de seu amigo para tocar com eles em apresentações e estúdio.
  Contrariando as previsões de meu pai, até que eu estava me saindo muito bem na cidade grande.
  A chaleira apitou com seu som agudo e alto, indicando que a água já fervera. Meu gato de pelagem cinzenta, Angus, correra até a cozinha se enroscando em meio as minhas pernas.
  - Se eu não gostasse tanto de você o chamaria de medroso – acariciei sua cabeça e logo ele começou a ronronar.
  Enchia minha xícara com a água fervente quando o telefone tocou. Fui em direção ao aparelho pregado na parede ao lado do armário, um dos bilhetes coloridos colados sobre ele me lembrava de que no sábado, o mesmo dia do concerto, meu irmão viria passar algum tempo comigo durante as férias de inverno.  Atendi o aparelho em seu quarto toque, enrolando o fio nos dedos.
  - Claire? – a voz perguntou do outro lado.
  - Sim, quem fala?
  - Ah, olá Claire. É Kane, Miles Kane.
  Hesitei por um instante, mordendo o interior da bochecha. Um mau hábito que já me causara alguns machucados.
  - Claro. Kane... Miles Kane.
  Ou Bond, James Bond, pensei não conseguindo evitar relacionar as duas falas, sendo proposital ou não.
  - Consegui seu número com Emmet White, espero que não se importe. Gostaria de conversar com você sobre nossa proposta.
  - Sem problemas, pode falar.
  - Na verdade gostaria que conversássemos pessoalmente, se estiver tudo bem para você.
  Estaria mentindo se dissesse que aquele convite não me deixara apreensiva. Um encontro, mesmo que profissional com Miles me assustava um pouco. Entretanto, como eu sempre dizia: confiança em primeiro lugar.
  - Claro. Quando?
  - Hoje se for possível. Tem algum plano para o almoço?
   Almoço. Tentei me lembrar de qualquer coisa que poderia ter marcado para aquele horário, mas não me recordando de nenhuma, aceitei o convite.
  Kane me passara o endereço de um restaurante no centro da cidade, qual eu conhecia de nome, pois era famoso por seus altíssimos preços.
  Ótimo! Sem pressão alguma.
  - Tudo bem, até mais tarde Srta. Watson – falou por fim.
  - Até mais, Miles Kane.
  Ao desligar o telefone, corri para meu quarto e comecei a vasculhar o guarda-roupa. Estava um tanto desorganizado, como de costume. Fechei as cortinas para que os abelhudos vizinhos não pudessem espalhar o boato de que a sem vergonha da garota que vivia no 47 estava trocando de roupa em plena luz do dia, deixando que todos a vissem seminua.
  Experimentei todas as combinações possíveis, alternando desde o mais formal até o mais despojado. No final, acabei optando pelo vestido rodado azul marinho que havia sido a primeira peça que vestira. Ao fim, parecia que um furacão havia passado por meu quarto deixando ali a roupa de toda população.
  Antes de entrar no banho, colocara meu caríssimo Wolfgang Amadeus Mozart para tocar na vitrola, esperando que sua brilhante sinfonia fosse capaz de acalmar meus nervos. Enquanto a água quente escorria pelo meu corpo, pensava nos planos de minha vida. Independente da escolha que tomasse, fosse aceitar o convite de Kane ou continuar na companhia, meu objetivo permaneceria o mesmo: a Filarmônica de Berlim. Isso era inexorável.
  Após algum tempo, fechei o registro e enrolei-me na toalha. Em frente ao espelho, decidi que deixaria o cabelo solto, pois era uma das poucas coisas que me faziam sentir bela e atraente. Sentia-me extremamente confiante, para ser sincera.
  Tinha a impressão de que aquele dia era um daqueles em que nada poderia estragar meu bom humor.
  Ou talvez eu estivesse-me precipitando, pois não era nem meio dia e eu ainda não havia saído de casa.

...

    Agradeci pela neve e chuva dos últimos dias, que deram uma limpada em meu carro quando vi o manobrista do restaurante sinalizando para que eu parasse. Os donos dos veículos novos e reluzentes parados na fila atrás de mim deviam estar se perguntando o que diabos eu estava fazendo ali.
  O simpático homem abriu a porta para que eu pudesse sair e eu lhe dei a chave que tintilava devido aos inúmeros chaveiros.
  - Você tem que forçar um pouco a marcha – o adverti.
  Concordando com um sorriso, ele não pareceu se importar. Quando girou a chave na ignição, o ronco do motor chamou a atenção dos que estavam por perto de modo nada sutil. O rapaz fez um sinal de ok com a mão e saiu rumo ao estacionamento.
   - Belo carro, madame – o funcionário que fazia controle das placas, Ronald, como pude identificar no pequeno crachá, dissera – Tinha um igualzinho até pouco tempo atrás.
  - Você o trocou? – perguntei ao pegar a comanda.
  - Não, não. Ele quebrou de vez.
  Ainda rindo de seu comentário, adentrei o restaurante onde logo fui recepcionada.
  - Seja bem-vinda ao Massimo, como poderia ajuda-la? – perguntou a mulher mais loira e alta que eu já havia visto na vida com um sotaque diferente. O lenço azul em volta de seu pescoço era da mesma cor de seus olhos extremamente claros.
   Demorei um instante para respondê-la, pois estava admirada com o ambiente a minha volta. Os lustres no teto, os perfeitos arranjos de flores, a música clássica tocando ao fundo. Era tudo milimetricamente arrumado.
  - Vim encontrar Miles Kane. Sou Claire Watson.
  - Um momento, por favor.
  Ela conferiu o que pareceu ser uma lista no tablet que tinha em mãos e voltou-se a mim sorrindo, mostrando seus dentes grandes e brancos.
  - Por aqui, Srta. Watson – fez sinal para que eu a seguisse e assim o fiz.
  Passávamos pelas mesas ocupadas por pessoas bem vestidas e arrumadas, rindo de coisas que pareciam ser engraçadíssimas e falando sobre assuntos igualmente importantes.
  “Oh, você viu o vestido que Jessica usou no casamento? Era da coleção passada!”
  “Eu sei! E não era apenas seu vestido que era da coleção passada. Pelo o que Miranda me disse, logo Robert irá troca-la por uma da nova coleção, se é que me entende.”
  E seguiam-se risos e goles de champagne.
  Ignorando as fofocas da camada social mais exclusiva de Londres, identifiquei a música que tocava ao fundo como sendo da Orquestra Real do Concertgebouw, considerada a melhor orquestra da Europa em 2006.  Ponto para os neozelandeses.
  - Por favor, sente-se – indicou a mesa perto da janela – Gostaria de guardar seu casaco?
  - Ah, sim. Obrigada – respondi tirando o trench coat que usava.
  - O Sr. Kane não demorara a chegar. Aquele homem! Sempre se atrasa, não é mesmo?
  Seu tom indicara certa intimidade, como se contasse uma piada interna da qual eu supostamente deveria conhecer bem. Seu sorriso zombeteiro sumira ao perceber que obviamente eu não fazia a mínima das ideias do que ela estava falando.
  - Bem, fique á vontade.
  Deixou-me sozinha ao sair rebolando o quadril. Logo então, apareceu um garçom a quem pedi um copo d’água com o máximo de cubos de gelo possíveis, pois sentia minha garganta ficar mais seca a cada segundo que se passava. E isso apenas piorou com o tempo, ao olhar no relógio e ver que quase 30 minutos havia se passado desde o horário combinado por Miles.
  As pessoas ao redor já me olhavam pelo canto do olho enquanto pedia meu terceiro copo, entretanto essa sensação dissipou-se quando a figura de Kane, vestido em um elegante terno cinza apareceu no hall de entrada.  Ele percorreu o corredor, acompanhado da moça loira, chamando a atenção de todos os olhares para si.
  - Acho que vou deixar a água para mais tarde – avisei o garçom que concordou com um aceno.
  Ironicamente, eu poderia jurar que ele saíra de um dos filmes do 007. Era como se ele andasse em câmera lenta enquanto uma de suas famosas trilhas sonoras tocava ao fundo.
  Calma, Claire. Calma.
  - Merci, Amelie – dissera dirigindo-se a moça que sorrira se derretendo inteira.
  - De rien, Miles.
  É claro que ela era francesa.
  Voltando-se para mim, que assistia a toda cena atônita, Kane pegara minha mão nas suas e beijara suas costas delicadamente.
  - Não há desculpas suficientes no mundo que possam justificar meu atraso. Sinto muito por ter deixado uma dama como você esperando por tanto tempo – falou ainda segurando minha mão.
  - Ah... Sem problemas – falei deixando escapar um suspiro.
  Sorrindo, provavelmente por estar pensando o quanto patética eu era, sentou-se á minha frente. Desabotoo o terno deixando à mostra a fina gravata preta e a camiseta social branca. Perguntei-me se ele tinha disposição para vestir-se daquele modo todas as manhãs, enquanto eu achava um sacrifício vestir um jeans e um par de botas.
  - Você está encantadora, Claire.
  Céus, eu podia sentir minhas bochechas corarem.
  - Obrigada – respondi educadamente – Você está muito elegante.
  - Fico lisonjeado, ainda mais vindo de uma pessoa como você.
  Antes mesmo que eu pudesse fazer algo, ele chamara um garçom que se prontificou para atender. Como eu não conhecia o lugar, aceitei a sugestão de Miles mesmo não fazendo ideia do que o nome que ele falou significava.
  Ao dispensar o rapaz, ele assumira um ar mais sério e soube que o rumo da conversa sem dúvida alguma passara dos elogios para os negócios.
  - Espero que tenha pensado em nossa proposta – começou – Já fechamos contrato com quase todos os músicos, a maioria deles são da Academia de Música Clássica Londrina. Estávamos satisfeitos com eles, até alguém mencionar certa violinista da Companhia. Conhece o maestro Charles Benner, Claire?
  - Claro. Ele foi meu maestro durante um ano, enquanto ainda tocava na Academia assim que cheguei a Londres.
  - Pois bem, foi ele quem nos falou não só de você, como dos outros. A curiosidade foi tanta que decidimos fazer uma visita a vocês e ficamos impressionados. Claramente já sabíamos da altíssima reputação de sua companhia, mas nem isso nos impediu de ficarmos surpresos.  Especialmente com você.
  - Não pareci ter impressionado á seu amigo tanto assim – deixei escapar o comentário, pois a feição de reprovação do outro perante á mim ainda me era fresca na memória.
  Miles riu enquanto arrumava sua gravata.
  - É difícil impressionar Alex. Talvez até tenha se sentido intimidado diante de sua confiança. Ele não é acostumado com isso, as garotas agem de forma bem diferente ao seu redor.
  - Mal posso imaginar – sorri irônica, mas Kane pareceu não perceber.
  - Eu a entendo – continuou – Entretanto ele não será um problema. Já escolheu seus músicos, agora eu tenho carta livre. De qualquer modo gostaria que ele mudasse de opinião, tentarei conversar com ele antes de sua viagem. Alex ficará fora da cidade por dois ou três dias para visitar a família antes de darmos início à nova etapa. Apesar de tudo, meu amigo é uma pessoa muito dedicada.
  Explicando-me detalhadamente cada parte de seu planejamento, Miles deu-me o documento que assinaria caso minha resposta final fosse sim. Naquele ponto, estava mais que claro que eu aceitaria sua proposta.
  Independente da opinião de Alex Turner, eu seria a violinista solo dos The Last Shadow Puppets.

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